I
Sentou-se a escrever. A luz pálida do ecrã a bater-lhe no rosto cansado e inexpressivo, reflectindo-se nos olhos que timidamente anunciavam o vazio por baixo das pestanas. Os dedos acariciavam as teclas, mas a ousadia necessária para marcar a negro o virtual não surgia, nem parecia ter vontade de vir.
Escrever, escrever... Tão simples e, contudo, tão complicado. Preciso era começar, alinhavar umas ideias, uma personagem com quem os leitores se identificassem, uma trama que agarrasse os olhos ávidos, um final surpreendente, os louros e aplausos de todos os que importavam, a inveja daqueles que preferia ignorar, a fama, a glória, o Olimpo. E, contudo...
Era de noite, claro. O dia passara-o na banalidade das aulas, vira o pôr-do-sol reflectido no café do costume, e após as piadas de sempre, ele lembrara-o:
- Espero que tenhas o texto pronto para a semana, Romeu. Nem penses que vou atrasar mais uma vez a publicação por tua causa.
Ele não pensava nada. Pensar era tão doloroso. Não sabia porque é que as pessoas partiam do princípio que ele gostava de pensar. Era-lhe uma actividade detestável, aliás. Deprimia-o. O tomar consciência das coisas só poderia ser comparável, em termos de dor, a ser triturado lentamente numa picadora de carne. E agora que relia isso na mente, acrescentava, idiotice. A picadora seria uma leve massagem comparada com isso.
Uma história, só precisava de uma estúpida história, para publicar numa ainda mais ridícula revistinha com pretensões intelectualóides. Algo simples, não mais de três páginas, mais uma foto que a Cátia tiraria em questões de segundos com a engenhoca digital que tivesse adquirido nessa semana, e poderia ficar descansado, voltar à odiosa monorotina, seu verdadeiro habitat, do qual nunca saía, inicialmente por opção, agora por impossibilidade de sobrevivência fora.
- Vá lá! – gemeu para o impávido e misturado alfabeto, cada letra no seu isolamento teclal, como se de lá esperasse uma resposta às suas preces, preocupações e angústias mais profundas, numa nova religião do Progresso e da Técnica.
Mas do alto das esferas movidas a electricidade não teve resposta. Suspirou, vencido, e levantou-se para buscar o alívio na negridão viciante da cafeína. Mais uma vez.
Enquanto saboreava o amargo final, pensava o quão mesquinha era a sua existência. Teria decerto algum problema – ou vários, seria talvez o mais provável – e agora que se debatia com uma situação tão desagradável de bloqueio intelectual, que, convirá dizer, nunca antes lhe tinha acontecido, sentia-se abalado no mais profundo da sua mente. A única faculdade que lhe tinha sido dada, a sua incrível criatividade, desaparecera por fim deixando-o às feras.
Seria de esperar. Ele usava e abusava dela. Era ela que fazia com que os dias se tornassem suportáveis. Em pequeno, quando passava horas a fio sozinho no canto do recreio – não gostava de futebol e as raparigas gozavam com ele –, no liceu, enquanto os colegas namoriscavam pelos cantos, mesmo agora, no meio dos amigos e dos copos de cerveja – saía do mundo real e deixava-se ficar no quentinho da sua mente, no conforto dos seus devaneios com outras pessoas, noutros mundos, por vezes mais negros que aquele que habitava, mas muito mais controláveis. E isso é que interessa, no fim de contas. Saber como vai acabar a história.
Mas agora o começo, a chispa maravilhosa que surgia do nada e fazia brotar o fogo no negro teclado perante ele, ou inspiração, se preferirem o termo, a pomba que desce sobre o profeta e lhe dita os desígnios do Grande Arquitecto, etc, não vinha. Precisava de um estímulo.
(to be continued...)
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